“Oito do sete” e a prosa de Cristina Judar

“Oito do sete” é o primeiro romance da escritora Cristina Judar, paulistana indicada ao Prêmio Jabuti de romance e ao Prêmio São Paulo de Literatura 2018. O livro aqui tratado é dividido em quatro partes: Magda, Glória, Serafim e Roma. O foco narrativo gira em torno da relação entre Magda e Glória, que são um casal homossexual, repletas de particularidades e força.

O romance tem diálogos muito potentes e reflexivos, talvez um talento herdado da escritora por conta da sua experiência com HQ’s, na produção dos livros Lina e Vermelho, Vivo. As adjetivações também não são excessivas, o que prova que Cristina consegue, objetivamente, provocar sem precisar de tantos “floreios”. Outro ponto essencial é entender que o livro não “mastiga” a narrativa de uma maneira linear, muito menos simplória. As personagens falam sobre seus pensamentos em relação ao mundo e a si mesmas, parecendo transportar o leitor para dentro das suas cabeças. Dentro dessas cabeças, faz muito barulho.

Cristina Judar, autora do romance “Oito do sete”

A primeira parte do livro tem a narração feita por Magda, em primeira pessoa. Ela é uma designer de moda e conta sua história da infância à juventude, contando principalmente sobre sua relação com Glória, sua amante. Parece que o pensamento de Magda, e talvez a própria escrita de Cristina, conectam o exterior com o que se passa dentro de nós. Parece que, para falar de nós mesmos enquanto seres humanos, o ideal aqui foi o uso de elementos do mundo. Imagens. Essas imagens, quase que de maneira cinematográfica, são captadas por quem lê. Automaticamente, estamos dentro de uma sala de cinema. Ou melhor, estamos dentro da vida, como se estivéssemos presenciando uma história digna de ser retratada numa sala de cinema.

Retratar um casal de lésbicas de maneira tão particular e intimista demonstra uma quebra imensa com os tradicionais estereótipos que se fazem sobre o assunto. Magda e Glória são mulheres completamente diferentes. Não existe uma categoria comportamental na qual se possa encaixar as duas. Glória, ao contrário de Magda, é uma personagem ácida, sarcástica, pragmática, obstinada. Elas duas se revelam de maneiras distintas e é justamente isso que faz com que essa relação seja tão interessante. O relacionamento entre elas ocorre de uma forma muito natural e a homossexualidade aparece como sendo apenas uma característica, no meio de uma história que não se resume a isso, é bem mais complexa. “Ele é um livro que trata muito sobre a questão, hoje, da itinerância, de pessoas que pensam novas formas de relacionamento e de existência, de comunicação e de expressão pessoal”, diz a autora.

Outra personagem tratada de maneira muito interessante é o anjo Serafim. É caracterizado como desprovido de sexo, informação curiosa em se tratando de um livro que tem como protagonistas personagens homossexuais. Apresenta-se como alguém diferente dos anjos em geral, já que contesta algumas ideias ligadas à religião e relaciona-se com as redes sociais. Cristina deu esse nome à personagem tendo como base o anjo Serafim, referenciado na Bíblia Sagrada e do qual já foi feita a tradução para “serpente ardente” ou “seres exaltados ou nobres“. Ele comporta-se como um observador, que analisa o comportamento dos humanos e parece conhecer uma verdade que ninguém conhece. É uma personagem sábia, esplêndida. A presença dela evoca uma ideia permeada por todo o livro de espiritualidade, misticismo.

Essa ideia espiritual também está muito presente na última parte do livro, que é um lugar… e também uma personagem. Roma, a cidade e a personagem dessa última parte do livro, é um palco híbrido de angústias e reconstrução. A cidade, aqui, deixa claro para o leitor a possibilidade de se reerguer das suas cinzas, de se refazer, recriar. Tem uma narração clássica, que ambienta as palavras com a imagem que se faz da cidade. Roma é uma cidade sempre cheia de visitantes, assim como nós. Segundo a autora, “Ela é uma senhora romana mesmo, uma mulher que descreve as experiências que ela teve em sua carne. As ruas são seus membros, são seus braços e suas pernas”.

Dessa forma, Cristina Judar cria um romance que respeita a inteligência do leitor e o faz criar, junto com ela, as histórias cruzadas nele. O leitor é apresentado ao interior de todas as cabeças que transitam pelo livro, fazendo-o perceber vários olhares diferenciados e conhecer as personagens de maneira direta, sem que ninguém as apresente ou fale sobre elas. Antes delas mesmas, é claro.

Cristina Judar é escritora, roteirista e jornalista. Tem 48 anos e é autora das HQ’s Lina e Vermelho, Vivo, além de coautora do livro Luminescências, escritora do projeto de prosa poética Questions For a Live Writing, e uma das editoras da revista LGBT Reversa Magazine. Recebeu Menção Honrosa no Prêmio Sesc de Literatura 2014 por Roteiros para uma Vida Curta. Foi indicada ao Prêmio Jabuti 2018 e venceu o Prêmio São Paulo de Literatura 2018, pelo seu primeiro romance, Oito do Sete.

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